Só por um momento imagino que tem um ser me observando escondido através da escuridão do quintal onde nem a lua é capaz de iluminar. Sempre tenho essa sensação quando vou ao terraço a noite lavar pratos e imagino uma mulher com aspecto cadavérico agachada no escuro, deixando apenas um olho seu á mostra, um olho tão azul que é capaz de ver meu próprio reflexo como se fosse um espelho, e então ela estica seu dedo indicador fino, pálido e enrugado em minha direção como se pudesse me tocar, mas sem realmente o fazê-lo. A pele do seu rosto retorcida, tão magra que parecia não ter carne, o cabelo coberto por um pano surge a luz também. Da sua boca começam a sair palavras incompreensíveis, como um cântico, uma profecia macabra e amaldiçoada. Estou condenada a ficar só. Não preciso entender a linguagem que ela usa para sentir um calafrio percorrendo minhas costas e um aperto no peito subindo para a garganta. Engulo minha saliva várias vezes e tento não sentir pânico. Foi tudo imaginação, não irei perder as pessoas que eu amo tão cedo, não irei ficar sozinha novamente.
Sentada agora na cama do meu quarto o aperto no peito ainda não me deixou. Assim que comecei imaginar todas aquelas coisas saí do terraço e entrei na cozinha fechando a porta, tentando não olhar novamente para aquele lugar... Porquê? Por que esse medo tão repentino e sem sentido? Sem sentido, não! Consigo pensar claramente quais os motivos me levaram a ele, eu apenas personifiquei tudo o que tento espremer dentro dessa mala em que o zíper insiste em não querer fechar e deixar escapar, pelo menos, alguma pecinha. É simples sorrir e espremê-los para longe de mim ou para o mais profundo do meu eu. É simples. É só eu pensar em um possível futuro feliz e não pensar demais ao ponto de ficar deprimida.
Clarissa cutucou meus óculos de grau quadrado de borda laranja e perguntou com sua voz rouca de sono:
— Tá pensando no quê?
— Eu imaginei aquela coisa de novo.
— Por que tu imagina sempre uma velha? Por que uma velha é tão assustadora, Ali? — Rolou seu corpo até ficar de barriga pra baixo e colocou seu braço em cima de minha barriga.
— É que a velhice sempre parece mais solitária. — Após minha resposta ela parecia refletir olhando para frente.
— É verdade... vamos dormir. — Pediu fazendo um biquinho.
— Pode voltar a dormir, eu vou fazer chá para mim. — Disse causando inconformidade na garota de cabelos castanhos avermelhados.
— Então eu vou contigo! — Fez impulso para sentar na cama.
O pijama grande ficava fofo em seu corpo pequeno. Levantei e ela me seguiu como um gato se enroscando na perna do seu humano vinha saltitando. Não sei de onde tirou energia de uma hora para outra. Coloquei a água na panela e risquei o fósforo para acender o fogo. Peguei um rolinho de folhas de cidreira e depositei no recipiente. Esperamos pacientemente o chá começar a ferver enquanto pegávamos nossas xícaras coloridas e ríamos do desenho da torre Eiffel e do nome Nova Iorque gravado logo abaixo da gravura.
— Seria impressionante visitar Nova Iorque e encontrar a torre Eiffel lá, seria como viajar para dois lugares ao mesmo tempo. O cara que fez essa xícara só foi muito criativo. — Dizia Clarissa com sua boca minúscula e macia.
Sorri encarando e percebi o quanto ela conseguia me fazer esquecer meus medos por tanto tempo. Eu a amo. Amo a Clarissa e não posso perdê-la. Meus olhos começaram a arder querendo lacrimejar.
— Tá tudo bem, Alice? — franziu as sobrancelhas preocupada.
Estendi meus braços em sua direção e ela entendeu. Abraçou-me tão forte e beijava minha bochecha enquanto minhas lágrimas rolavam silenciosas. Um estrago silencioso. Mas eu sei que posso desabar com essa garota e ela irá cuidar bem de mim assim como eu sempre irei cuidar dela. Mesmo que exista profecias malditas que me assombrem ao anoitecer. Mesmo diante de todas as minhas inseguranças. Clarissa não despedaçaria meu coração como Henrique o fez. Não iria me deixar em um altar, não sumiria por semanas como se eu tivesse a obrigada a fazer tudo aquilo. E eu não a encontraria dormindo com outra garota na nossa cama. Clarissa não morreria de uma hora para outra como minha jovem prima Jose. Não adoeceria e ficaria sem condições de pagar um tratamento e mesmo que isso acontecesse, eu estaria lá. Mas isso não vai acontecer. Clarissa não sairia escondida de mim com nossos amigos para não me convidar mesmo sabendo o quanto eu me sentia sozinha depois da morte de um ente querido. Nem se gabaria depois do quanto foi magnífico. Mas Clarissa é humana, não é? Por que estou depositando todas minhas expectativas nela? Não... apenas não irá me magoar de propósito como Henrique e meus antigos amigos. Espero o mínimo.
— Sabe, Ali... eu preciso te contar uma coisa. — Sussurrou em meu ouvido. — Preciso que se acalme primeiro.
O ar parecia faltar meus pulmões, o corpo gelou e esperei a sentença. Clarissa se afastou do meu abraço e encarou meu rosto com seus olhos âmbar de felina. Analisava bem como me dizer o que tanto prendia em sua mente. De repente meus músculos doíam tensos.
— Não gosto de chá de cidreira e nenhum outro, eu só disse isso quando te vi pela primeira vez pois queria me aproximar. Prefiro um café forte e açucarado.