— Você vai ao banheiro também?
— Ah, sim, sim! — e me apressei porta adentro.
Entrei em uma das cabines, abaixei minha calça de couro preta as pressas, parecia que havia um rio inteiro dentro de mim saindo. Enquanto fazia xixi, pude ouvir vozes de duas pessoas conversando baixinho ao lado. Encostei minha cabeça na divisória querendo entender, formei envolta da orelha uma concha com as duas mãos. Só estou um pouco curiosa porque geralmente vão para se pegar, mas não pra ficar puxando papo. Não tinha respiração ofegante, nem gemido, apenas sussurros.
— Você deixou o corpo aonde?
— Naquele prédio abandonado na esquina. Ninguém vai perceber.
— Naquela antiga loteria?
— Ah, era uma loteria?
— Era! Não sabia? Olha, ta todo mundo bêbado e ninguém vai se dá conta.
— E se ela conhecesse alguém da festa? E se esse alguém perceber o sumiss...
— Cala a boca! Ela não conhecia ninguém da cidade, era francesa e não a vi com...
Respirei forte de forma brusca e logo pus as mãos sobre a boca tampando. Podia ser a Geneviève, não vi muitas francesas andando por aí. De repente a música parecia distante, como se nada tocasse, os meus olhos se encheram de lágrimas e o que antes era medo se transformou em raiva, como a água virando vinho na bíblia. Levantei irritada e me vesti que mal vi. Joguei a bebida no vazo e o copo no lixo. Saí da minha cabine e fui até a do lado e com um chute forte a escancarei causando um estrondo. Puxei meu canivete afiado do colete, mas não tinha ninguém ali. Na verdade, sequer houve barulho de gente saindo, era como nunca tivessem entrado. A droga é que não pude reconhecer se era homem ou mulher falando, porque certeza que fantasmas não eram.
O espelho refletia meu corpo por inteiro, cabelos undercut de um verde misturando-se a um roxo igual ao meu batom. O ódio dançava sob minha pele, sob meus olhos. Iria até aquele prédio, não me importava se seria perigoso ou não, a adrenalina fervilhava cada célula minha. Talvez tenha empurrado as pessoas no meio do caminho sem querer, mas era o de menos. Ignorei qualquer chamado que fosse dos amigos, concentrada na porta de saída do Barboate. Assim que pisei fora e me vi naquela praça asfaltada do centro histórico, acendi um cigarro dos mais fuleiras com gosto mentolado e fui caminhando a procura do tal prédio abandonado que antes era uma loteria? Não, não tinha nada daquilo ali. Devo ter passado uns 30 minutos rodando a região. Aproximei-me ao centro da praça onde tinha uma estatueta e encostei acendendo outro cigarro. Assim que me virei o cenário tinha mudado, a atmosfera, as pessoas, os estabelecimentos, pareciam mais maltratados. A visão acinzentou-se.
Pisquei várias vezes achando está chapada, era melhor voltar ao Barboate e avisar a Lydia e Lucas do ocorrido. Porém, ao me aproximar só pude notar pessoas que antes não estavam ali, os olhos eram de um preto total e me encaravam com desprezo. Próxima do portal, seguraram meu braço com força fazendo com que eu parasse.
— Me solta! Você ta doido? — era um homem alto.
— Você não devia tá aqui, Bia! — avisou severo. Como sabe meu nome?
O meu corpo arrepiou todo, pois ele fedia a ovo podre misturado com bosta, apesar das roupas sociais demais para uma noite de festa. Estreitei os olhos, pois vi logo atrás dele a loteria, o empurrei e acelerei para lá. Como tinha surgido do nada? Procurei tanto e não a tinha visto! Umas tábuas cobriam a parte de cima de sua entrada, me abaixei e passei pelo buraco de baixo, parecia que tinham arrancado anteriormente. O local era repleto de lixo e poeira, um breu denso girava no ar. Os balcões de atendimento estavam quebrados. É, nada de gente morta! Uma corrente de ar fria veio em minha direção balançando meu cabelo, uma porta havia acabado de se abrir lentamente sozinha. Cautelosamente cheguei perto, peguei meu celular do bolso e tentei ligar para meus amigos, porém começou a falhar o sinal. Liguei a lanterna com uma balançada no aparelho e uma enxurrada de luz iluminou o outro cômodo.
— Não! — gritei quando um corpo com garganta cortada e em posições impossíveis surgiu. — Não! Não! Geneviève!
Me agachei a segurando contra mim, assim pude notar o rosto de olhos revirados, deixando amostra suas órbitas leitosas e brancas. A sensação de estar sendo vigiada às costas apossou-me. Limpando o choro, percebi não ser ela, a garota de cabelos cacheados francesa. Essa tinha fios lisos escorridos, o rosto totalmente diferente. Soltei seu corpo com desconhecimento. Quem é essa? Ah, meu Deus! Ah, meu Deus!
Sua cabeça antes mole, seu corpo antes rígido, de braços revirados completamente para trás e pernas quebradas formando um triângulo, flutuou. Sua vista voltou-se para mim encarando minhas entranhas. Hipnotizada pela situação a vi abrindo a boca e cuspindo sangue enquanto tentava dizer algo:
— Saia! Saia! Você será a próxima...
A hipnose foi quebrada e então fugi amedrontada, tremendo, de dentro daquela local. Não, aquela não era a praça de verdade. Estava diferente ainda. Os postes quebrados e pouca iluminação. Refiz o caminho anterior e não conseguia encontrar, não conseguia. Onde estava a saída? O meu celular não funcionava. Ok, calma! Respirei fundo e caminhei para parada de ônibus. Não demorou muito e lá vinha um, mas estava escrito no seu letreiro algo totalmente diferente, uma saudação receptiva até:
“BEM-VINDA, BIA”
A letra é tão pequena que tenho dificuldade de ler os contos. Mas, o blog é uma boa leitura.
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